domingo, 14 de novembro de 2010

Ao toque do pandeiro(Cristo, a Cultura e o Mundo)

Publicado no boletim n 2524 em 14 de novembro de 2010.

Não há como deixar de notar sua presença. No meio da multidão, Bíblia colada ao peito ou erguendo-se como espada, ouve-se a voz rouca anunciando os oráculos de Deus. Na estação de trem de São Cristovão, no Rio de Janeiro, pode-se vê-los aos borbotões: são os pregadores populares. O discurso é sempre o mesmo: com suas roupas surradas e ternos encardidos, proclamam o pecado que permeia o mundo e o juízo iminente do Senhor. Salve-se quem puder, a hora é essa, pois nada que exista neste mundo é bom. E seguem-se os cânticos ao som de um pandeiro velho.
Nós os olhamos de longe, num misto de desprezo e admiração. Ao mesmo tempo em que nos achamos superiores àqueles “fanáticos”, nos repreendemos por não termos algo tão forte para acreditar ao ponto de perder completamente o senso de ridículo pela urgência da mensagem. E qual a razão de nossa atitude? Na verdade, nossa Igreja não se define bem em relação ao mundo, ao seu dia-a-dia, aos seus costumes, à sua cultura. Tratamos muito bem dos assuntos celestiais, “tocamos nas vestes de Jesus” em nossos cultos, mas ainda estamos confusos na relação com o mundo em que vivemos. Para os pregadores ferroviários isto é muito simples: o mundo, e tudo que se relaciona com ele, é mau. Mas e para nós?
O Evangelho deixa claro que a postura inicial de Cristo com relação à cultura é de assimilação. Quando valoriza o ser humano, na Encarnação, Cristo está valorizando também a cultura humana. Lutar por permanecer em uma redoma, tal como os essênios na época de Jesus ou os monges em toda a trajetória da Igreja, é reafirmar o espírito de isolamento e não entender a petição de Jesus, com relação a nós: “Não peço que os tires do mundo” (Jo 17.15).
Mas também está claro que, se a primeira postura de Jesus é a assimilação, a segunda é a crítica. Se a preocupação inicial é “não peço que os tires do mundo”, o pedido conseqüente é “mas que os guardes do mal” (Jo 17.15). Toda a posição de valorização da cultura humana, assumida por Cristo, não se contrapunha à sua crítica feroz ao sistema maligno que subjaz ao mundo (cf I Jo 5.19).
Nosso grande desafio hoje, à beira da virada de milênio, é assumir o equilíbrio. Experimentar, na prática, a velha máxima apostólica: “julgai todas as coisas, retende o que é bom” (I Ts 5.21). Em nossa relação com a cultura, precisamos seguir o exemplo de Cristo: encarnar-se, assimilar o que é bom, sem, por isso, deixar de assumir uma postura crítica. Está mais do que na hora de traduzirmos o Evangelho para a linguagem da cultura brasileira para afirmar que, sem Jesus, a folia é apenas passageira.
Carregar sobre si esta postura dialética frente à cultura, bailando entre a assimilação e a crítica, fará com que nossa Igreja descubra mais um pouquinho de sua identidade. E a partir daí, nossa admiração pelos pregadores ferroviários não será apenas pelo vigor crítico e profético com que pregam e cantam. Mas porque o fazem com um pandeiro, tipicamente brasileiro, nas mãos.

Rev. Christian Bitencourt

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