domingo, 30 de maio de 2010

ESPIRITUALIDADE E LIBERDADE

Publicado no boletim nº 2501 em 30 de maio de 2010.

Quando a gente é criança, tem algumas coisas que não entram na cabeça de jeito nenhum. Eu me lembro, por exemplo, que, por mais que a professora se esforçasse e desse exemplos e explicasse, eu não conseguia apreender direito a diferença entre substantivos abstratos e concretos. E ela dizia: "Abstrato é aquilo que a gente não pode tocar"; e eu retrucava: "Então vento é abstrato"; e ela: "Não, porque vento a gente sente"; e eu, mais uma vez, com a fantástica sensibilidade de criança: "Então alegria é concreto, porque a gente sente também". É, criança não está muito afeita a essas diferenças entre concretos e abstratos...
Existem conceitos que, por mais que se escondam na aura da abstração, são concretos em sua essência, pois definem-se pela concretização daquilo que representam. Assim é a alegria, o prazer, o rancor, o ódio. Assim é o amor. Já imaginou amor sem objeto? Quem ama, ama alguma coisa (nem que seja a si mesmo, num amor egoísta). Amor é abstrato só no mundo dos gramáticos. Pra quem é amante, amor é mais do que concreto.
Da mesma forma é a liberdade. Não há como imaginar liberdade sem visualizar os grilhões ruindo, as cadeias se rompendo, as amarras sendo desfeitas. Liberdade é um conceito eivado de sentimentos concretos, práticos, de gente de carne e osso. Liberdade é a vivência de quem não conhece limites em sua realidade particular. Por isso um prisioneiro pode achar que tem liberdade no limite dos 12m2 de sua cela, mas basta uma janela que dê para o mundo lá fora e ele se sentirá preso.
É neste sentido radical de liberdade, de rompimento das barreiras, que Jesus apresenta o instrumento de mudança da condição humana: "e conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará" (João 8.32). A verdade nada mais é que o próprio Cristo, "o Caminho, a Verdade e a Vida" (João 14.6). Na pessoa e na vida de Jesus Cristo encontramos a experiência real da liberdade. É em Cristo que verificamos o paradigma da liberdade humana.
O curioso é que se escuta muito falar nas Igrejas sobre liberdade, mas a liberdade dos gramáticos. Aquela que fica enfileirada na série de exemplos de substantivos abstratos e que é decorada entre muitos outros para o dia da prova (como eu fiz tantas vezes). A verdadeira liberdade que Jesus propõe é fruto de uma experiência radical com Ele. Só uma experiência radical com Cristo pode levar à compreensão radical da liberdade.
Mas esta espiritualidade, que resulta na expressão concreta da liberdade do Reino de Deus, não é irresponsável. Nós, cidadãos do Reino, somos libertos para servir. É servindo ao próximo, na dependência do Santo Senhor, que temos a certeza de que não haverá homem sendo senhor sobre outro homem. Esta é a proposta prática da liberdade do Reino de Deus: o fim da opressão humana, seja ela política, econômica, religiosa ou moral.
A proposta de Jesus Cristo continua viva e firme. Vivenciar Sua espiritualidade é sair do conforto da contemplação e descer do monte para enfrentar a realidade (Lc 9:28-37). Ser espiritual, na concepção de Jesus, é ser livre livre para servir. E essa liberdade precisa fugir do palavrório infrutífero e tronar-se visível, experimentável, concreta.
Com tudo isso, na verdade, eu percebo que continuo parecido com a época em que era criança: ainda confundo os abstratos e os concretos. Mas, ao contrário dos adultos pretensamente esclarecidos, não me importo nem um pouquinho: afinal de contas, é às crianças que pertence o Reino de Deus.

Rev. Christian Bitencourt

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